História da língua

O LINGUAJAR CUIABANO

Algumas Particularidades do Falar Cuiabano

Muitos já estudaram o linguajar cuiabano, o que vamos ver foi retirado do livro, O LINGUAJAR CUIABANO E OUTROS ESCRITOS, do Antônio de Arruda, que registrou o que lhe pareceu mais característico no linguajar dos habitantes da baixada cuiabana. É um trabalho de especialista na matéria, de méritos inegáveis, sobretudo por salvar do esquecimento aspectos culturais preciosos que vão desaparecendo.

Neste trabalho foram apresentados alguns exemplos, desse linguajar, como o verbo assistir no sentido de morar, fortuna como significado de sorte e não apenas de riqueza, a expressão a reio como sinônima de a fio, além de outros mais. São falares que caíram em desuso em outras partes do País e que permanecem em Cuiabá e seus arredores.

Há diversos termos que são freqüentes na fala cuiabana e que só raramente se empregam em outros lugares. Estão nesse caso, por exemplo: assuntar (observar), molóide (fraco), ladino (esperto), encasquetar (Ter idéia fixa), perrengue (molóide).

FORMAS INTERMEDIÁRIAS - Outro fenômeno interessante é a persistência, em Cuiabá, de formas intermediárias, de uso popular, que se tornaram arcaicas com a evolução semântica das palavras. Assim, ainda se ouvem entre nós falares como: alumear (diz-se alumeio, à semelhança do antigo adágio: o ignorante, como a candeia, a si se queima e aos outros alumeia); dereito, despois, fruito, lua e luma (lua), etc.

Trata-se de falares trazidos pelos portugueses e também pelos Bandeirantes, na época da mineração, que ainda se achavam em uso. Muitos desses termos são do tempo de Camões.

Atualmente, essa pronúncia é mais comum na zona rural, embora também se encontre, às vezes, na área urbana, entre pessoas incultas. Sucedeu que a transmissão oral perpetuou a fala tornada exclusiva de certas parcelas do povo que não tiveram acesso ao instrumento uniformizador da escola.

O RÁDIO E A TELEVISÃO COMO INSTRUMENTOS UNIFORMIZADORES - As particularidades lingüísticas e outros modismos encontrados em Cuiabá e alhures vão desaparecendo ante a influência do rádio e da televisão. Da mesma forma, aos meios modernos de comunicação social têm concorrido para a unificação prosódica dos brasileiros. Os sotaques e outras particularidades regionais tendem a desaparecer. A famosa pronúncia carioca, por exemplo, tão característica, considerada por muito tempo modelar para o brasileiro, já se vai diluindo na babel em que se transformou a fala no Rio de Janeiro. Isso, não há dúvida, resulta da imigração desordenada das últimas décadas. Imigrantes o Rio sempre teve, mas não em massa, como vem ocorrendo. Outrora, os forasteiros - quase sempre de classe média - chegavam ao Rio e iam assimilando não só o sotaque carioca, mas também as gírias e acepções diferentes que algumas palavras ali adquiriram. Ultimamente, os migrantes introduzem no meio suas peculiaridades lingüísticas, criando um complexo cultural ainda não perfeitamente definido.

ALGUMAS SEMELHANÇAS ENTRE FALARES REGIONAIS - A propósito de assistir, na acepção de morar, que se observa em Cuiabá, cabe lembrar que esse termo também se encontra, com o mesmo significado, em alguns escritores mineiros contemporâneos. O fato se explica pela identidade de formação histórica e pelo isolamento em que permaneceram Mato Grosso e Minas Gerais. Mas, com referência a esta, o isolamento logo desapareceu, o que faz supor que as diferenças semânticas com o restante do País também esmaeceram. Não conheço em pormenores o falar mineiro, mas um fato é evidente: o sotaque mineiro sobretudo o belo-horizontino é o que mais se aproxima do carioca.

Quanto a Goiás, seu isolamento foi longo e perdurou até as primeiras décadas deste século, tendo sido, portanto, pouco menos extenso que o de Mato Grosso. De qualquer modo, as duas culturas se assemelham, onde se incluem as singularidades lingüísticas. Nos livros de Cora Coralina encontram termos também usados em Cuiabá, como: Mandrião, Timão, badulaques, mulher-dama, de apé, etc.

ALGUAM CORRUPTELAS - Escapa deste trabalho o registro dos chamados brasileirismos sintáticos, vulgares em todo o País, como: vi ele; eu lhe vi; vou na cidade; para mim falar, etc.

Mas, vale a pena aduzir algumas observações sobre corruptelas interessantes que se observam em Cuiabá cuja origem se perde nas brumas do passado. Exemplos:

Duvidá: talvez. Emprega-se em frases como: - Será que ele vem hoje? - "Duvidá". Suponho que esse duvidá seja uma redução da frase. " se duvidarem..."

Intá! ( interjeição): toma! Qual a formação do termo? Derivaria de "ai está?" ou de "ainda está?"

Muriço: maciço (ouro maciço).

Saltaveaco: espécie de banana da terra, enorme. Segundo explicação que se costuma apresentar, a palavra é corruptela de farta velhaco. Quer dizer: a banana é tão grande que o velhaco que furta pode fartar-se dela.

Vosmecê ( de vossa mercê): Tratamento intermediário entre o senhor e você ( nem tão cerimonioso como o primeiro, nem tão familiar como o segundo) . Como se sabe, de vossa mercê veio também o você que, entre nós, às vezes, principalmente na zona rural, se pronuncia voncê ou vancê.

Corruptelas que vigoram em todo o País são sinhô e sinha (ambos derivados de senhor). Daí vieram seu nhô, sea e nhá, como forma de tratamento menos cerimonioso que os termos de que se originam.

Alguns derivados semelhantes como sinhô, sinhoca, nhoca, nhonhô. Ioiô, iaiá, sinhá funcionam como apelidos em toda parte, mas, em Cuiabá, costumam, às vezes , juntar-se a nomes designativos de família e de lugar de residência: Nhonhô de Manduca, Nhonhô do Baú. Quanto ao nhô, pode deixar de ser forma de tratamento para se transformar em apelido: Nhô Pulquério.

Há outra particularidade cuiabana. É que nhá se emprega indiferentemente com relação a homem ou mulher: Nhá Tonho, Nhá Ju, Nhá Blandina, Nhaninha (neste caso aglutinando-se ao nome)

ESPANHOLISMO - Lenine C. Póvoas, em seu ensaio "Influência do Rio Prata em Mato Grosso", enumera alguns termos usados em Cuiabá aos quais atribui providência do espanhol platino. Exemplo curioso citado por ele é o da palavra mano (mão na bola) usada no futebol. É que esse jogo, em Mato Grosso, teve inicialmente, como técnicos e jogadores, chilenos, paraguaios, argentinos e uruguaios, e daí a origem mano.

Alguns outros termos de largo uso, entre os cuiabano, também são provenientes do espanhol: alambrado (cerca de arame) e a interjeição caramba!

Problema controvertido é o da origem da pronúncia do CH e do G. O CH e seu correspondente X pronunciam-se TCH: O Coxipó encheu ( o cotchipó entcheu), enquanto o G em seu correspondente J soam como DJ: gelo (djelo), jóia (djóia)

Quanto ao CH (TCH), há quem atribua sua origem à influência espanhola, que não me parece razoável. Houve realmente em Mato Grosso influência do espanhol platino, conforme demonstrou Lenine C. Póvoas, mas não de molde a atuar tão profundamente em nossa prosódia, como seria o caso. Realmente, nossos contatos mais freqüentes com a fala espanhola ocorreram após a abertura da navegação do Rio da Prata, em 1858, até a inauguração da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, em 1914. São apenas 56 anos, tempo insuficiente para uma penetração cultural expressiva.

Ao que parece, tais pronúncias, tanto no caso do CH e do X, como no G e J, foram trazidos pelos portugueses e bandeirantes, que as empregavam à maneira então vigente, à semelhança do que aconteceu com o cuiabanês como uma todo, ou seja, aquelas pronúncias, como este, permaneceram em nossa cidade, caindo no esquecimento em outras partes.

A DECADÊNCIA DO CUIABANÊS - O cuiabanês praticamente desapareceu, achando-se confinado quase exclusivamente em áreas rurais. De generalizado que era, foi diluindo até ficar restrito a pequenos redutos, onde permanecerá, sem dúvida, até que seja atingido pelos elementos uniformizadores da linguagem, especialmente o rádio e a televisão. Certamente, os mais velhos ainda resistirão, enquanto os jovens serão atraídos pelos novos valores.

Mas pergunta-se: como teria ocorrido essa mudança? Breve retrospecto histórico mostra o que aconteceu. Cuiabá herdou sua original maneira de falar dos paulistanos e portugueses que para aqui vieram em busca do ouro e aqui ficara. Essas formas lingüísticas se estratificaram em face do isolamento secular da população. Até 1858, data da abertura da navegação fluvial pelo Rio da Parta, uma viagem a São Paulo ou Rio de Janeiro constituía verdadeira aventura. D. Aquino Corrêa, em uma de suas pastorais, dedicada ao pai, informa que este, como comerciante, empreendeu, quando moço, algumas viagens até o Rio, sempre acompanhando tropas de burros através do sertão bravio.

Com esse isolamento era muito escasso o intercâmbio dos cuiabanos com o resto do País. As elites que aqui atuavam quase sempre vinham de fora. De fora provinham os dirigentes: da Metrópole, nos tempos coloniais, da corte, no Rio, após a Independência. Raramente tínhamos um governante local, como o Barão de Melgaço - assim mesmo um "bretão cuiabanizado". Outras províncias é que nos forneciam também o juiz - O Tribunal de Relação, hoje Tribunal de Justiça, só foi criado em 1874 - assim como os poucos médicos, advogados, engenheiros, dentistas, que aqui trabalhavam.

Com o início da navegação fluvial, em 1858, a situação foi-se modificando. Os jovens passaram a freqüentar as Escolas Superiores do País - as civis, bem como as do Exército e da Marinha. Deu-se então o choque de culturas e o cuiabanês começou a periclitar. É de se presumir o que teria acontecido, em contato com os novos ambientes, com os Rondons, os Dutras, os Pedros Celestinos, os Murtinhos, Os Estêvãos Corrêas, os Mários Corrêas e tantos outros.

Nessa condições, o cuiabano, com o seu falar e seus costumes característicos, sentiu-se um estranho em o novo meio. Sentiu-se diferente e o diferente se torna discriminado. As diferenças geram as discriminações, sob os impulsos implacáveis da maldade humana. Provém geralmente das deficiências físicas, da cor, das doenças, das origens e também da linguagem, como no caso. Daí a necessidade da adaptação: a fala foi-se libertando das características herdadas dos ancestrais. Ao regressarem, esses jovens traziam novos hábitos e com estes outra linguagem que não a dos demais conterrâneos. Casando-se, criaram novos padrões para seus descendentes. E a fala tipicamente cuiabana foi perdendo terreno.

Em termos esquemáticos, pode-se estabelecer a seguinte trajetória em que ocorreu o esmaecimento do falar cuiabano: Cidade, Porto, Zona Rural.

Expostos ao deboche com o cuiabanês (principalmente nas últimas décadas do Séc. XX), o cuiabano não resistiu e adaptou-se a outros falares. Não seguiram os nordestinos que mantém sua pronúncia típica, especialmente a abertura do E do pretônicos.

Segue algumas palavras retiradas do GLOSSÁRIO do livro de Antônio Arruda, referente ao linguajar cuiabano.
:D